O Novo Testamento é composto por vinte e sete livros, dos quais vinte e um são incontestavelmente cartas, e outros três possuem características marcantes desse tipo de escrita. Dentre os títulos daqueles vinte e um escritos que incontestavelmente se enquadram neste gênero, alguns indicam seu autor e seus destinatários, como na “Epístola de Paulo aos Romanos”; alguns revelam somente seu autor, como na “Epístola de Tiago”; e outros revelam somente os destinatários, como na “Epístola aos Hebreus”. O terceiro Evangelho e o livro que conta os “Atos do Espírito Santo por intermédio dos Apóstolos”, hodiernamente conhecido apenas como “Atos dos Apóstolos” ambos escritos por Lucas, têm declarações introdutórias que caracterizam claramente uma carta enviada a Teófilo. O Apocalipse também tem muitos aspectos de uma carta, mas este, obviamente, seria mais bem catalogado como pertence à classe de literatura denominada como apocalíptica.
A quem lê o Novo Testamento esporadicamente e sem orientação pode parecer que os Evangelhos foram escritos primeiro, por uma questão de cronologia. As Cartas sobre o ministério terrestre de Jesus somente poderiam, logicamente, ser escritas depois de contados o nascimento e a vida de Jesus, bem como o desenvolvimento de seu ministério.
Na verdade, os Evangelhos foram escritos alguns anos depois do aparecimento das cartas. Assim como não teria havido nenhuma carta sem o Jesus histórico, certamente não teria havido necessidade de um Evangelho escrito, se o poder e a influência do Cristo ressurreto já não tivessem sido conhecidos e sentidos na vida daqueles que formavam a comunidade cristã antiga. Foi para essas comunidades primitivas que as cartas, os depósitos literários mais antigos da Igreja, foram escritas e tiveram tamanha influência sobre a Igreja emergente. A maioria delas contém dados sobre o remetente e os destinatários, como também saudações. É preciso, para a compreensão satisfatória de seus conteúdos que se compreenda também a diferença entre Carta, Epístola e Mandato, que compõem, mais que meros estilos de comunicação pessoal, os gêneros literários mais difundidos nos primeiros séculos da era cristã.
Carta
A carta pessoal média na antiguidade consistia de menos de uma página do Novo Testamento Grego. Podemos encontrar um modelo exatamente assim, explicitamente descrito pela Bíblia, que afirma:
“E o comandante escreveu uma carta nestes termos: Cláudio Lísias ao excelentíssimo governador Félix, saúde. Este homem foi preso pelos judeus e estava prestes a ser morto por eles, quando eu, sobrevindo com a guarda, o livrei, por saber que ele era romano. Querendo certificar-me do motivo por que o acusavam, fi-lo descer ao Sinédrio deles; verifiquei ser ele acusado de coisas referentes à lei que os rege, nada, porém, que justificasse morte ou mesmo prisão. Sendo eu informado de que ia haver uma cilada contra o homem, tratei de enviá-lo a ti, sem demora, intimando também os acusadores a irem dizer, na tua presença, o que há contra ele. Saúde.” (At 23.25-30).
A comparação entre essas cartas e as cartas do Novo Testamento, ressalta a grande diferença entre ambas. Mesmo as cartas mais curtas da Bíblia, como Filemon e 2 e 3 João ultrapassam em muito esse tamanho. Todas as outras cartas do Novo Testamento são incomparavelmente mais extensas que essa referência formal às cartas pessoais. Se mesmo assim forem consideradas como cartas, certamente estão entre as obras mais extensas entre as cartas pessoais da antiguidade. Nesse aspecto, as cartas de Paulo não podem incidir dentro da categoria normal de uma carta regular. Os teores de suas cartas pressupõem algo além de uma carta particular normal. Deve ser acrescentado que os escritos de Paulo têm toda característica de uma carta pessoal, mas a universalidade dos conteúdos fez com que eles fossem classificados sob o termo técnico de composições literárias conhecidas como epístolas.
A escrita de cartas há muito já era usada como um meio de comunicação pessoal. Durante a época da “Pax Romana”, a escrita de cartas se tornou uma importante forma de comunicação. Graças à organização do vasto Império Romano, durante o tempo da formação do Novo Testamento, havia um excelente sistema de estradas por todo o mundo ocidental. Essas estradas estavam sob constante proteção do governo romano e permitiam viagem relativamente segura entre as principais cidades do Império. Roma não tinha um sistema organizado de correio público, mas os mensageiros, tanto particulares quanto governamentais, podiam viajar com alguma garantia de chegar a seu destino. A forma de comunicação escrita era necessária tanto para o governo como para o comércio. Era apenas natural que as famílias e amigos dispusessem deste meio de fazerem conhecidos seus negócios entre si. As cartas particulares formam uma grande parte dos manuscritos antigos que foram encontrados pelos arqueólogos modernos.
A questão, no entanto, continua sendo se os escritos bíblicos podem ser vistos de fato como cartas ou não. As cartas não somente eram usadas para a comunicação oficial, comercial ou particular. A carta era também usada para fins de propaganda. “Cartas abertas” eram escritas para informar o público acerca de certos itens dignos de nota. Algumas dessas tinham o efeito dos modernos “boletins públicos.” Cícero, um dos escritores romanos de cartas mais prolíficos (aproximadamente 106 a.C.), fazia uma distinção entre as cartas que escrevia para uso particular e aquelas para uma leitura mais pública. Ele escreveu: “Vocês veem, eu tenho uma maneira de escrever o que acho que será lido por aqueles a quem envio minha carta, e outra maneira de escrever o que acho que será lido por muitos”.
As palavras de Cícero podem nos ajudar a compreender uma diferença definida entre as formas de uma carta e uma epístola. Ele procurou mostrar que uma carta era pessoal e dirigida a uma pessoa referente a um problema da situação específica. Não havia nenhuma pretensão de que fosse feita uma leitura mais extensiva, a não ser por aqueles a quem a carta estava endereçada.
Epístola
Na antiguidade, como já dito acima, tratados filosóficos eram colocados em forma de carta. Exemplos para isso são as cartas de Sêneca ou do já citado Cícero. Para essa forma literária foi se cristalizando o nome de epístola. Ela deriva da palavra grega epistole, que significa carta. Como forma literária, no entanto, epístola não significa uma carta verdadeira, mas uma carta simulada. A epístola era escrita sob o pretexto de ser uma carta, com a finalidade expressa de ser publicada. Isto quer dizer que o autor, enquanto endereçava a carta a uma pessoa ou entidade específica, não estava tanto escrevendo para essa pessoa ou entidade quanto estava usando a forma para fazer conhecido ao mundo seu argumento. Este gênero de escrita ou composição literária é denominado epistolar. No âmbito desse tipo de escritos antigos, há tratados que, na sua extensão, são semelhantes às cartas maiores de Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios). Desse modo, podemos definir então as cartas de Paulo como epístolas?
Após uma análise mais aprofundada, podemos afirmar seguramente que as cartas de Paulo não são epístolas. Quem as lê no seu contexto, percebe que não são tratados em forma de carta, como os de Cícero ou de Sêneca. Há menções demais ao relacionamento pessoal entre o autor e os leitores. Esses escritos estão por demais interligados com a história de vida comum deles. As cartas de Paulo não são simuladas; elas são escritos reais de aconselhamento.
Aspectos que são evidentes nas cartas de Paulo, nas outras cartas do NT necessitam de explicação em cada detalhe. Poderíamos considerar um ou outro escrito, como Hebreus ou 1 João, como um tratado em forma de carta, para o chamarmos de epístola, mas jamais no caso das cartas paulinas.
Dessa forma, podemos facilmente concluir que as “Epístolas” do Novo Testamento, e em especial as de Paulo, eram, na verdade, cartas pessoais, e não epístolas. É de maneira geral aceito hoje que Paulo não escreveu conscientemente neste sentido técnico. Ele escreveu para pessoas ou igrejas específicas, com problemas específicos, muito embora as igrejas de hoje ainda se vejam às voltas com os mesmos problemas, em essência, que as igrejas do século primeiro.
Também podemos perceber, facilmente, que as cartas de Paulo demonstram uma autoridade apostólica consciente, que torna os conteúdos normativos para igrejas e pessoas de outras áreas e épocas. As cartas são bem construídas, para demonstrarem um plano cuidadosamente elaborado. Elas são cartas pessoais quanto ao tom, ao espírito e ao propósito. Revelam o cuidado do pastor com seu rebanho.
Na altura em que a análise parece se tornar um tanto quanto confusa, e mesmo nos aponta para um resultado inconclusivo, devemos ainda analisar a última forma literária:
Mandato
Esse era o nome dado aos escritos oficiais das autoridades de Jerusalém aos judeus da diáspora. São escritos oficiais com o objetivo de esclarecer questões éticas e teológicas. Por meio deles as autoridades religiosas de Jerusalém comunicavam às sinagogas na diáspora orientações normativas.
É possível imaginar que para Paulo esses escritos foram usados como modelo quando ele elaborou os seus escritos às igrejas dos cristãos gentios. Visto que as cartas de Paulo são semelhantes aos escritos das autoridades de Jerusalém na sua extensão, nos dados sobre os remetentes (título nos dados sobre remetentes e lista de vários remetentes) e no grande número de destinatários, é provável que as cartas de Paulo sejam cartas apostolares abertas. Isso é mais evidente em algumas cartas, como Gálatas, e menos em outras, como na carta a Filemom, que é mais pessoal.
O autor utiliza nas cartas a forma do discurso evangelístico e parenético: pregação, admoestação, exposição didática, diálogo, testemunho profético, instrução ética e o hino. Em vários trechos ele se baseia em tradições primitivas já bem firmadas e conhecidas, como, por exemplo, em Rm 1.3s e 1Co 15.3-5, em que cita profissões de fé antigas, usando-as na sua argumentação. Também em Fl 2.6-11 e Cl 1.15-20 ele cita hinos da igreja primitiva, tirando deles conclusões para o ensino e a vida das igrejas.
Como cada escrito do Novo Testamento tem suas características específicas, devemos analisar cada uma delas individualmente, para concluirmos se pode ser chamada de carta ou epístola, e faremos isso com cada um deles em seu estudo específico e em hora oportuna. Com relação às cartas de Paulo, temos argumentos suficientes para dizer que não são cartas pessoais, mas que, à exceção de Filemon, são cartas apostolares abertas.